D. havia dito que nunca me abandonaria, como as outras amigas fizeram. D. dizia que era ela minha verdeira amiga e as outras pessoas eram todas falsas. D. dizia que nós erámos as pessoas mais inteligentes da cidade e as outras pessoas eram todas estúpidas.
D. disse que gostou de mim por causa dos meus óculos, me fez amar o que eu odiava em mim, me enxergou quando eu achava que era invisível, me fez sentir que eu tinha valor, que era importante.
Eu não percebi que estava apenas repetindo o mesmo erro: entregando toda minha confiança e autoestima na mão de outra pessoa. Eu não conseguia enxergar quem eu era sozinha, eu precisava de D. afirmando coisas positivas sobre mim para que eu acreditasse em mim.
Não só com D., qualquer pessoa destruía minha autoestima em 1 segundo e eu precisava de várias para levantá-la. Era só no olhar do outro, pelos elogios dos outros e tentando me fazer importante para os outros que eu começava a gostar de mim.
Um dia D. me disse “vamos fazer um pacto, aqui nessa sorveteria. Nós vamos ser Importantes, Indestrutíveis e Inseparáveis. Lambemos os palitos de sorvete uma da outra e estava feito o pacto. Acreditei naquelas palavras durante toda nossa amizade como uma oração que me socorresse em momentos de desespero.
Passávamos qualquer momento, em que eu ou ela não estavámos em aula, juntas. Ela me mostrava cantoras, bandas, escritores, artistas que eu não conhecia e compartilhávamos obssessões em comum, como por Fiona Apple, que parei de escutar por um ano quando D. foi embora.
D. era multiartista, escrevia, compunha, tocava vários instrumentos, sempre dizendo “isso aqui é muito fácil pra mim, eu compus essa música em 30 minutos, sério, ainda não tá finalizada, mas é muito boa né?” D. lia muito, sabia de tudo, vinha de uma família pobre, como eu, e sonhava em “vencer na vida”, ser escritora, acadêmica, artista famosa e reconhecida.
D. se apaixonava intensamente, foi minha primeira amiga lésbica e 18 anos atrás as pessoas cochichavam pelos cantos da escola que a gente era namorada, porque andavámos muito juntas. D. era apaixonante e uma vez eu achei que eu tivesse me apaixonado por ela, pensei em beijá-la enquanto ela tocava violão pra mim, mas nunca aconteceu nada, nem tinha nenhum clima da parte de D.. Nós só erámos muito intensas e começamos a brigar muito, brigávamos na rua, na porta do apartamento dela, no pátio da escola, todo mundo via. E depois nos desculpávamos aos prantos, abraçadas.
D. precisava de mim, eu era sua melhor amiga isso me dava alegria: ser necessária assim pra alguém. D. me ligava as dez da noite chorando porque M. tinha terminado com ela, dizia “vem aqui em casa, por favor, preciso de você”. Eu ia, de ônibus, atravessando a cidade pra segurar uma toalha no rosto de D. euquanto ouvíamos Avril Lavigne.
Minha mãe achava um absurdo completo. Me arriscar assim de noite por uma amiga, que amiga é essa que não pode esperar até amanhã, e você precisa impor limites, diga que não pode, não é assim.
- mas mãe ela tá muito mal, ela disse que ia se matar, eu preciso ir.
As coisas eram assim com D. e comigo, ela me dizia que se não fosse assim eu não era amiga de verdade dela. E eu passei a repetir isso com outras pessoas “amiga de verdade é aquela que eu vou chamar qualquer hora do dia e ela vai estar lá por mim”.
Descobri depois de D. e de muitas decepções que não era nada disso. o problema é a lacuna que isso deixou em mim, o vazio do significado, hoje em dia não sei mais o que é ser “uma amiga de verdade”. A ideia que eu tinha de ter uma melhor amiga era com D., quando ela sumiu, ficou a folha em branco “de quem foi ser a melhor amiga agora?. Sinto como se eu deixasse de preencher alguma parte de um formulário da existência.
D. me apresentou meu primeiro namorado, que também tinha D. na sigla inicial do seu nome. Formamos um tipo de trisal intelectual. D. não ficava com a gente, mas queria ver a gente transar, aconteceu um dia numa festa muito louca. D. se sentia importante de ser amiga da gente, e eu me sentia importante de ser amiga dela e namorar o cara que D. dizia ser o mais inteligente de todos que ela já conheceu.
D. conheceu J. pela internet, as duas se apaixonaram. J. fugiu de casa, em Minas, porque os pais não aceitavam a sexualidade dela, veio morar com D., agora éramos 4 little monsters geniais na cidade.
Paul Mccartney anunciou show em Fortaleza, compramos os ingressos, 4. No dia do show a cidade parou, trânsito infernal, horas parado em ônibus ou táxis (não tinha uber na época), era melhor sair andando ou correndo.
D. disse “venham pra minha casa e a gente vai junto”, já tava perto da hora do show não ia dar tempo, a gente tentou explicar que se encontrava lá, que se a gente passasse na casa dela ninguém ia conseguir ver o show, etc.
Não adiantou D. falou que não ia mais, e não foi, perdeu o ingresso, nada valia, ela só dizia que a gente tinha abandonado ela e que não erámos amigos de verdade. Aquilo já era pra ser o que hoje chamamos de Red Flag, mas não foi, nem tudo que veio depois.
Basicamente sempre a mesma coisa: eu precisava concordar com tudo que ela dissesse senão ela começava uma briga até eu dizer que ela tá certa, ou desligava na minha cara, ficava muito chateada ou eu tinha que atender as ligações dela sempre que duravam 4h (sério) e eu morria de medo de dizer que tinha que fazer outra coisa e ela ficar ofendida.
Eu também não podia gostar de outras pessoas, ter outras amigas que ela tinha ciúmes, e se eu elogiasse qualquer escritora que não fosse ela ou alguém que ela gostasse, ela também ficava implicando comigo perguntando porque eu tô perdendo tempo lendo uma pessoa tão burra.
D. se casou com J, foram pra Dinamarca, lá o casamento começou a ruir. Eu já tinha terminado com meu namorado da época o que foi um baque pra D. ela se sentiu traída. Eu tinha traído meu namorado e por isso terminei, descobri que ela também havia me traído. Mas D. disse que minha traição era pior porque foram 5 anos depois e a dele no começo.
Só depois de um tempo tudo ficou bem e depois que eu quebrei a cara com o namorado seguinte que… me traiu, karma que chama, né? D. me acolheu e me disse coisas lindas: você tem que lembrar quem você era antes dele.
As coisas eram assim com D. ao mesmo tempo que ela era uma amiga pra toda hora, que sabia me ouvir, me animar, me acolher, ela também exigia o mesmo e até mais, sentia que com D. eu sempre tinha que tá em alerta pra não chateá-la.
Em 2020 eu sai da casa da minha, estava terminando minha graduação e ia publicar meu primeiro livro, parecia que tudo finalmente tava se encaminhando na minha vida. D., que morava na Alemanha, começou a namorar a distância uma amiga minha.
Fiquei feliz pelas duas, mas preocupada pois ambas saíram de relacionamentos conturbados. D. dizia “tu vai ver vou conquistar ela em 1 semana, ela vai ficar louca por mim” E foi assim mesmo. Minha amiga disse que nunca tinha sentido isso por ninguém.
Um dia, desesperada, eu liguei pra D. chorando, na Alemanha eram umas 4 da manhã. D. seria a única que ia me atender nesse horário. Eu precisava que ela traduzisse o resumo do meu tcc porque eu estava tão ansiosa que não conseguia fazer mesmo sabendo. D. fez e antes disso havia pedido pra ler meu primeiro capítulo, fez algumas considerações. Dizia que minha orientadora era muito burra, mesmo ela sendo especialista no meu tema que era Brecht. Mas pra D. ela não sabia de nada e eu devia chamar D. pra ser minha coorientadora. Não fiz.
No dia da defesa online D. estava lá, fiquei nervosa com tudo e acho que esqueci de agradecer a esses detalhes que D. havia feito. Apenas falei da presença dela ali. Ela só deu um meio sorriso.
Quando me mudei e fui mostrar minha casa nova não senti D. empolgada.
Depois da defesa ela me mandou um email (?) dizendo que se sentiu mal porque eu não coloquei ela como co-orientadora, que aquele era o trabalho dela e ela devia ser valorizada, principalmente pelos amigos. Expliquei que não era isso, mas que ia ser complicado colocá-la nessa posição assim com dois meses antes da defesa (que foi quando ela sugeriu que eu fizesse isso). Ai ela falou que se o motivo era só pra não ter confusão com minha orientadora ela aceitava.
Mas D. mudou, não falava mais comigo, não ligava mais, nem atendia minhas ligações. Quando falei com a irmã dela pra saber se tava tudo bem (pois era conhecido que D. passara meses terríveis lá fora, dizia que tava passando fome, que estava em um abrigo para mulheres vítimas de violência, que não tinha dinheiro, me ligava chorando dizendo que queria morrer, ela tinha um sangramento incurável no útero que ninguém sabia o que era, mil coisas), e a irmã dela disse que tava tudo bem. Foi falar com ela e D. me mandou uma mensagem enfurecida dizendo pra eu não perturbar a irmã dela, pois ela estava grávida e eu ia fazer ela perder o bebê.
Depois ainda pedi D. pra escrever o prefácio do meu livro, mas ela disse que não tinha tmepo.
Aquela não era D., não a que eu conhecia, não minha melhor amiga. Minha melhor amiga estaria feliz por tudo que eu estava conquistando e ia querer fazer parte disso. Minha melhor amiga jamais ia mandar uma mensagem daquelas.
Me desesperei e mandei muitas mensagens chorando perguntando o que eu tinha feito??
Nada.
Deixei o silêncio habitar o tempo.
Um dia uma amiga em comum veio na minha casa e disse “tu viu que a H. foi visitar a D. na Alemanha?” eu gelei “não”… foi assim que descobri que minhas duas amigas que estavam namorando me bloquearam de tudo. Assim, só sumiram.
Quando D. foi embora, como todo mundo, eu desmoronei e depois de novo quando outra amiga também saiu da minha vida.
E essa dança dolorosa do adeus vai continuar sendo repetida até que eu decida criar outros movimentos.
news bem quentinha saindo do forno!
Nossa, Nádia. Deve ter sido doloroso, o processo de desgaste da amizade até o seu fim.