Sobre a tristeza, revolta e nojo de saber dos casos de abuso do Neil Gaiman eu deixo vocês com a newsletter da Aline Valek. Aqui eu quero falar principalmente da noção de consentimento que precisa urgemente ser revista pelos homens e pela LEI numa perspectiva da vítima, das mulheres.
Antes disso: o lado bom de estar fora do instagram, não ter twitter, nem threads quando essa bomba toda explodiu é o fato de eu poder pensar e formular minha opnião com CALMA, sem sentir uma pressão urgente de falar logo qualquer coisa sobre isso e pronto, longe de conteúdos rasos sobre isso e gente que só quer brigar por brigar nas redes sociais.
Eu pude conversar sobre tudo isso com amigos, tendo paciência de ouvir e sendo ouvida, inclusive amigos que não concordavam 100% comigo, mas nós ouvimos um ao outro. Isso me faz cada vez mais me sentir em paz por estar sem instagram.
Mas voltando ao que interessa, enquanto eu falava com um amigo percebi que pra mim, o que fritou a cabeça nesse caso é que a gente precisa falar sobre o que é consentimento (se a coleção Feminismos Plurais ainda não tem um livro sobre isso, precisa ter). Porque ai parece tá todo o argumento de defesa dos abusadores: foi consentido.
E minha argumentação é que: consentido em que CONTEXTO?
Como homens, principalmente os abusadores, entendem consentimento: se não gritou, não disse “não”, ou não lutou com todas as forças pra sair dalí e mais, se ele conseguiu o que queria que era meter o pau nela e gozar, então foi consentido.(símbolo de joinha).
Na verdade, no caso do Neil Gaiman eu tenho certeza que ele sabia que não estava conseguindo “consentimento” de uma forma legal, ética, ele sabia que estava comprando esse consentimento a partir do momento que ele escolhe mulheres em situação de vulnerabilidade econômica, e foi isso que argumentei com meu amigo que estava dizendo que se tudo aconteceu entre adultos e foi consentido, então não teve crime.
Eu volto pra argumentação inicial: o contexto social e econômico desse consentimento é crucial pra gente entender que dizer “sim” ou ficar calada, nem sempre é consentimento real, que não lutar fisicamente ou não gritar nem sempre é consentimento de verdade, que existe uma coisa chama coerção psicológica e social que a maioria das mulheres passa.
E o que é a coerção psicológica e social, pra mim? É como mulheres são educadas, socializadas e crescem internalizando psicologicamente pelo modo como o patriarcado é o sistema de dominação social vigente de que nosso dever é agradar homem.
Atire a primeira pedra se você é uma mulher hetero/bi e nunca se viu na situação de transar com um cara sem ter muita vontade, mas ficou parada esperando só passar logo, de saber lá no fundo que estava numa situação constrangedora, que não queria, que tentou resistir um pouco, mas desistiu porque achou que podia ser pior, que não teria forças pra lutar, ou que em casos de assédio sexual (no caso do Gaiman que era uma situação de patrão e empregada) você sabia que tinha que ceder porque podia perder o emprego ou algo no âmbito profissional e financeiro?
“Se você tem que convencê-las, isso não é consentimento"!
Se você for falar algo, com certeza, o cara dessa situação vai dizer que foi consentido. Você mesma pode em algum momento achar que foi, até entender o contexto.
E pra mim consentimento de verdade é quando os dois lados REALMENTE têm desejo mútuo um pelo outro. O homem pode até tomar a iniciativa, ok, você demonstrar interesse sexual por alguém adulto não é errado, de fato. Mas pra ser consentimento de verdade a outra pessoa tem que corresponder verdadeiramente (internamente e externamente) a essa investida e tem que tá dentro de um contexto que você sabe que não tá fazendo a pessoa se sentir coagida a aceitar.
“ai mas ela aceitou então ela concordou” ou “então ela também tem culpa”, não! quando que as pessoas vão entender que na violência contras mulheres, as mulheres vão ser sempre vítimas! Não tem meio termo, se uma mulher “aceita” ( na verdade não aceita, apenas não consegue sair da situação no momento) ou volta pra o abusador ela ainda é vítima! Que dificuldade de entender isso!
Então, pra mim consentimento É isso e ponto final: tem que tá dentro de um contexto saudável de paquera em que de fato haja uma vibe de desejo mútuo entre as duas pessoas e OLHE LÁ, porque essa coisa de vibe faz muitas vezes homens verem vibe onde não tem!
O contexto e ambiente pro consentimento não pode ser um tipo de situação em que o homem tenha poder ou esteja em uma posição de poder sobre a mulher e não pode haver nenhum tipo mínimo de resistência. Se a mulher disse não uma vez, pra quê insistir? Insiste quem quer estuprar, simples assim.
E a não ser que o homem seja um abusador compulsivo, como dá pra ver que é o Neil Gaiman, que devia com certeza se excitar em saber que tava coagindo a pessoa a fazer sexo com ele ou que diz que “gosta” de insistir e da resistência (pra mim um eufemismo pra dizer que gosta de estuprar), você sabe sim quando uma pessoa tá querendo você e quando não tá.
E se você sabe que a mulher não tá afim ou confortável, então simplesmente não insista, é assim que você não se torna um estuprador.
Ainda tem uma camada mais profunda e mais sutil do consentimento que é quando o desejo de uma mulher oscila, e sim, isso pode acontecer: às vezes uma mulher inicialmente corresponde a investida do homem, sente de primeira uma faísca de desejo e vai pra ver o que rola, mas no decorrer da situação percebe que não tá tão afim assim ou algo acontece que a deixa desconfortável e ela perde o tesão.
A partir daí entra a camada da coerção psicológica social de que mulheres são muito acostumadas a fazerem sexo sem gostar, pra agradar os homens, pra simplesmente não serem vistas como “cu doce” ou pra evitar que o homem fique com raiva e isso acabe gerando uma sensação de culpa.
Eu sou uma people pleaser (síndrome da boazinha) e só a ideia de que eu preciso me impor, colocar o meu desejo na frente de alguém ou que colocar limites vai gerar uma frustração no homem isso já me paralisou muito, por medo de desagradar.
A última situação de BDSM que passei o cara pediu pra dar um tapa no meu rosto, eu disse que não queria e ele deveria não ter insistido, eu já disse uma vez que não queria e já foi penoso pra mim dizer isso porque por ser people pleaser eu fico querendo agradar a todo mundo e aceitar tudo que todo mundo me pede mesmo que eu esteja desconfortável. Aí ele insistiu, pediu de novo, disse que queria muito e eu cedi. Pra ele foi consentido porque com certeza ele vai argumentar que eu devia ter continuado dizendo que não queria, ou parado ali e dito acabou, mas eu só falei “ok” e pensei “espero que acabe logo”. Depois ele ainda se sentiu a vontade de bater nas minhas costelas, sem pedir, dessa vez, e eu também não tive coragem de parar e dizer pra ele não fazer isso. A única coisa que consegui fazer é que quando ele me procurou outro dia querendo me encontrar de novo eu disse que não queria.
Portanto, não tem como o consentimento ser facilmente analisado apenas com um sim ou não (insistentes e gritantes “nãos” pelo visto) dentro de um contexto desses, em que nós mulheres somos acostumadas e ensinadas a nos conter, a nos diminuir, a nos apagar pra não incomodar, pra não gerar fúria em ninguém, pra ser a cool girl, pra termos a ilusão de sermos aceitas, amadas e desejadas porque é assim que a gente aprende a enxergar o nosso valor como ser humano o nosso valor no mundo: agradando.
é exatamente isso! ótimo texto, me instigou bastante.
Nádia, que texto! Você sintetizou muito bem a questão.
E sobre as "pequenas agressões" durante o sexo, dessas que não temos tanta certeza em estar consentindo, acho que dá uma discussão necessária para outro momento.
Tenho pra mim que Cinquenta tons de cinza, em seu auge, no tema BDSM, ensinou a abrir uma porta mas não a fechá-la com segurança. E assim faz a pornografia desde sempre, com a qual a maioria dos homens aprendem a tratar uma mulher na cama. E assim faz muitas pessoas que trazem esse conteúdo pra internet.
Está cheia de linhas borradas no que significa levar um tapa de um cara na cama.
É preciso estarmos atentas. E sinto muito pelo que aconteceu com você.